Por Felipe Luckmann
Apesar da onda de liberação sexual e do feminismo, ambos remontando à década de 70, a sexualidade ainda é um assunto tabu em nossa sociedade. Em virtude disso, não é de se espantar que exista ainda tanta desinformação e confusão em determinados assuntos ligados a ela, principalmente aqueles mais polêmicos, como a homossexualidade e a transexualidade.
Ao entrar neste terreno, as dúvidas e as falsas idéias extrapolam. É muito comum, mesmo em meios cultos, a confusão entre o homossexual, o travesti, o transexual, como se todos fizessem parte do mesmo fenômeno. Apesar de ambos transgredirem as regras de gênero tradicionalmente estabelecidas, há diferenças importantes e cruciais entre eles. É geralmente neste ponto que um conhecimento científico humanizado é importante, justamente para esclarecer as distorções feitas pelo senso comum, além de mostrar que todas as formas alternativas são simplesmente alternativas, não patologias ou desvios.
Dentre as distorções do senso comum, está a noção de que o gay gostaria de ser mulher, ou em casos mais fortes, que ele efetivamente seria uma mulher. Observa-se, neste caso, uma confusão entre os conceitos de orientação sexual e identidade de gênero. Esclarecer e divulgar estes conceitos, de forma simples e objetiva, seria um passo primordial para diminuir o preconceito e tais visões deformadas da realidade.
Identidade de gênero seria a construção e a visão que cada um faz de si, reconhecendo-se como homem ou mulher, incorporando os sentimentos de ser efetivamente de determinado gênero, além de hábitos culturais e comportamentos. Tal construção não vai necessariamente corresponder ao sexo anatômico.
O homossexual masculino, por exemplo, se reconhece como homem e alimenta sentimentos de ser homem, não necessariamente de ser mulher. Por isso, é incorreta a já citada e não incomum afirmação de que o gay gostaria de ser mulher, ou de que não seria homem. O que de fato acontece, é que o objeto de desejo erótico-afetivo do homossexual masculino é alguém do mesmo sexo, caracterizando a orientação sexual homossexual. Logo, identidade de gênero e orientação sexual são duas coisas diferentes, referindo-se a aspectos diferentes. Tanto o homem heterossexual quanto o homem homossexual, em tese, possuem identidade de gênero masculina. O que os difere, então, é o objeto de desejo erótico-afetivo, ou seja, a orientação sexual.
E onde estaria a raiz de tal confusão? Uma das origens é, sem dúvida, a construção que a sociedade faz do que é ser (estereotipicamente) de determinado gênero: seus papeis, atribuições, comportamentos, sentimentos, profissões. Espera-se que o homem seja o ativo, o viril, o dominador, enquanto que da mulher se espera submissão, sensibilidade e que seja passiva. Como diz a filósofa Judith Butler, “ser homem ou mulher é uma construção cultural, resultado de normas que estruturam as práticas sociais e operam sobre os nossos corpos de maneira muito incisiva e potente”. Por estas construções tão enraizadas, para algumas pessoas é inadmissível que um homem que se deixa penetrar por outro ainda seja homem; afinal, o homem teria sempre que ser “o ativo”. No entanto, o fato de se deixar penetrar numa relação sexual não tem nada a ver com identidade de gênero: homossexuais ativos, passivos ou versáteis, ambos teriam identidade de gênero masculina. Neste âmbito também encontramos outra falsa crença, a de que o homossexual afeminado seria o passivo, logo a mulher na relação, e o não-afeminado seria o ativo, o homem da relação. No entanto, fatos da realidade comprovam que ser “afeminado” não tem necessariamente relação com ser passivo numa relação, nem com alimentar sentimentos de ser mulher ou de efetivamente ser mulher. Por fim, existe o outro mito de que só o “passivo” seria homossexual, e o ativo não. Isso é falso, já que o objeto de desejo de ambos é direcionado ao mesmo sexo. É interessante colocar que tamanha estereotipação é resultado de uma visão limitada da sexualidade, que não enxerga práticas sexuais que fogem do intercurso genital, tentando “encaixotar” todos os indivíduos no sistema binário ativo(macho)/passivo(fêmea), como se essa fosse a única possibilidade, refletindo as construções de gênero acima referidas e um inegável heterocentrismo.
Quando o sexo anatômico de um indivíduo é diferente da identidade de gênero dele, fala-se então em transgêneros. É neste terreno que a ambigüidade e o rompimento com a norma estabelecida atingem o auge. Dentro do grupo dos transgêneros, estão os travestis e os transexuais. Por fim, aqui a distinção entre identidade de gênero e orientação sexual continua exatamente a mesma. Um(a) transexual pode, em tese, tanto ter orientação sexual heterossexual como homossexual.
Embora tais categorizações possam ser úteis para esclarecer alguns pontos e desmistificar outros, elas ainda são problemáticas. A sexualidade do ser humano é muito variada, repleta de nuances. Seria o sentimento de ser homem do gay e do heterossexual exatamente o mesmo? E o sentimento de ser mulher de mulheres lésbicas e heterossexuais seria também exatamente o mesmo? É possível determinar um limiar divisor entre travestismo e transexualidade? Como se poderia enquadrar a androgenia no conceito binário de identidade de gênero? Estas categorizações como homossexual, heterossexual, bissexual, transexual, não estariam escondendo uma diversidade enorme de práticas e vivências por trás de uma falsa idéia de uniformidade?
Se insurgindo contra essas categorizações nasceu a “teoria queer”. Ela incorpora, paralelamente, simpatizantes, gays, lésbicas, transgêneros, bissexuais e outras situações identitárias menos definidas. Ela busca, portanto, transcender e subverter essas categorias restritivas, ou seja, subverter as categorias da “(a)normalidade”. A própria utilização do termo queer, que no original significa pejorativamente “estranho”, “bicha”, é subversiva, pois transforma o significado antes negativo em positivo. Tal espírito revolucionário “empresta à teoria queer abrangência que congrega todos os indivíduos marginalizados ou rechaçados pela sexualidade convencional”*. Embora a Teoria Queer tenha importante penetração nos Estados Unidos, no Brasil seu estudo ainda é tímido.
Muito ainda precisa ser feito para trazer ao grande público uma discussão sincera sobre as questões aqui abordadas. É preciso produzir conhecimento levando-o ao cotidiano das pessoas e dialogando com elas, para então desfazer tantos mal entendidos existentes sobre homossexualidade, bissexualidade, transexualidade e tantas outras formas de expressão sexual colocadas à margem da sociedade.
* MARQUES, Adair e MARTINS, Raimundo. Teoria Queer! Estudo a partir do cotidiano de artistas goianos homossexuais do sexo masculino. Disponível em:
Ao entrar neste terreno, as dúvidas e as falsas idéias extrapolam. É muito comum, mesmo em meios cultos, a confusão entre o homossexual, o travesti, o transexual, como se todos fizessem parte do mesmo fenômeno. Apesar de ambos transgredirem as regras de gênero tradicionalmente estabelecidas, há diferenças importantes e cruciais entre eles. É geralmente neste ponto que um conhecimento científico humanizado é importante, justamente para esclarecer as distorções feitas pelo senso comum, além de mostrar que todas as formas alternativas são simplesmente alternativas, não patologias ou desvios.
Dentre as distorções do senso comum, está a noção de que o gay gostaria de ser mulher, ou em casos mais fortes, que ele efetivamente seria uma mulher. Observa-se, neste caso, uma confusão entre os conceitos de orientação sexual e identidade de gênero. Esclarecer e divulgar estes conceitos, de forma simples e objetiva, seria um passo primordial para diminuir o preconceito e tais visões deformadas da realidade.
Identidade de gênero seria a construção e a visão que cada um faz de si, reconhecendo-se como homem ou mulher, incorporando os sentimentos de ser efetivamente de determinado gênero, além de hábitos culturais e comportamentos. Tal construção não vai necessariamente corresponder ao sexo anatômico.
O homossexual masculino, por exemplo, se reconhece como homem e alimenta sentimentos de ser homem, não necessariamente de ser mulher. Por isso, é incorreta a já citada e não incomum afirmação de que o gay gostaria de ser mulher, ou de que não seria homem. O que de fato acontece, é que o objeto de desejo erótico-afetivo do homossexual masculino é alguém do mesmo sexo, caracterizando a orientação sexual homossexual. Logo, identidade de gênero e orientação sexual são duas coisas diferentes, referindo-se a aspectos diferentes. Tanto o homem heterossexual quanto o homem homossexual, em tese, possuem identidade de gênero masculina. O que os difere, então, é o objeto de desejo erótico-afetivo, ou seja, a orientação sexual.
E onde estaria a raiz de tal confusão? Uma das origens é, sem dúvida, a construção que a sociedade faz do que é ser (estereotipicamente) de determinado gênero: seus papeis, atribuições, comportamentos, sentimentos, profissões. Espera-se que o homem seja o ativo, o viril, o dominador, enquanto que da mulher se espera submissão, sensibilidade e que seja passiva. Como diz a filósofa Judith Butler, “ser homem ou mulher é uma construção cultural, resultado de normas que estruturam as práticas sociais e operam sobre os nossos corpos de maneira muito incisiva e potente”. Por estas construções tão enraizadas, para algumas pessoas é inadmissível que um homem que se deixa penetrar por outro ainda seja homem; afinal, o homem teria sempre que ser “o ativo”. No entanto, o fato de se deixar penetrar numa relação sexual não tem nada a ver com identidade de gênero: homossexuais ativos, passivos ou versáteis, ambos teriam identidade de gênero masculina. Neste âmbito também encontramos outra falsa crença, a de que o homossexual afeminado seria o passivo, logo a mulher na relação, e o não-afeminado seria o ativo, o homem da relação. No entanto, fatos da realidade comprovam que ser “afeminado” não tem necessariamente relação com ser passivo numa relação, nem com alimentar sentimentos de ser mulher ou de efetivamente ser mulher. Por fim, existe o outro mito de que só o “passivo” seria homossexual, e o ativo não. Isso é falso, já que o objeto de desejo de ambos é direcionado ao mesmo sexo. É interessante colocar que tamanha estereotipação é resultado de uma visão limitada da sexualidade, que não enxerga práticas sexuais que fogem do intercurso genital, tentando “encaixotar” todos os indivíduos no sistema binário ativo(macho)/passivo(fêmea), como se essa fosse a única possibilidade, refletindo as construções de gênero acima referidas e um inegável heterocentrismo.
Quando o sexo anatômico de um indivíduo é diferente da identidade de gênero dele, fala-se então em transgêneros. É neste terreno que a ambigüidade e o rompimento com a norma estabelecida atingem o auge. Dentro do grupo dos transgêneros, estão os travestis e os transexuais. Por fim, aqui a distinção entre identidade de gênero e orientação sexual continua exatamente a mesma. Um(a) transexual pode, em tese, tanto ter orientação sexual heterossexual como homossexual.
Embora tais categorizações possam ser úteis para esclarecer alguns pontos e desmistificar outros, elas ainda são problemáticas. A sexualidade do ser humano é muito variada, repleta de nuances. Seria o sentimento de ser homem do gay e do heterossexual exatamente o mesmo? E o sentimento de ser mulher de mulheres lésbicas e heterossexuais seria também exatamente o mesmo? É possível determinar um limiar divisor entre travestismo e transexualidade? Como se poderia enquadrar a androgenia no conceito binário de identidade de gênero? Estas categorizações como homossexual, heterossexual, bissexual, transexual, não estariam escondendo uma diversidade enorme de práticas e vivências por trás de uma falsa idéia de uniformidade?
Se insurgindo contra essas categorizações nasceu a “teoria queer”. Ela incorpora, paralelamente, simpatizantes, gays, lésbicas, transgêneros, bissexuais e outras situações identitárias menos definidas. Ela busca, portanto, transcender e subverter essas categorias restritivas, ou seja, subverter as categorias da “(a)normalidade”. A própria utilização do termo queer, que no original significa pejorativamente “estranho”, “bicha”, é subversiva, pois transforma o significado antes negativo em positivo. Tal espírito revolucionário “empresta à teoria queer abrangência que congrega todos os indivíduos marginalizados ou rechaçados pela sexualidade convencional”*. Embora a Teoria Queer tenha importante penetração nos Estados Unidos, no Brasil seu estudo ainda é tímido.
Muito ainda precisa ser feito para trazer ao grande público uma discussão sincera sobre as questões aqui abordadas. É preciso produzir conhecimento levando-o ao cotidiano das pessoas e dialogando com elas, para então desfazer tantos mal entendidos existentes sobre homossexualidade, bissexualidade, transexualidade e tantas outras formas de expressão sexual colocadas à margem da sociedade.
* MARQUES, Adair e MARTINS, Raimundo. Teoria Queer! Estudo a partir do cotidiano de artistas goianos homossexuais do sexo masculino. Disponível em:
http://www.anpuh.uepg.br/Xxiii-simposio/anais/textos/ADAIR%20MARQUES%20E%20RAIMUNDO%20MARTINS.pdf. Acessado em: 13/06/2006.
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Felipe é estudante de psicologia e colunista do Portal Angel Loiro
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